Sonhos de liberdade 170 anos da memória do Negro Cosme da Balaiada 20/09/1842 – 20/09/2012


Passaste por aqui amigo caminheiro
E não levou se quer o respeito
Dos netos dos teus bisnetos
Passaste por aqui D. Cosme Bento das Chagas
Nas terras de Urbano Santos rumo à Catingueira
Organizaste o quilombo na Lagoa Amarela
Mas não escapou da forca na goela
Passaste por aqui companheiro
Foste um negro fujão
Que fugiu da escravidão
Um guerreiro audaz
Líder quilombola respeitado e admirado
Com espírito de rei
Imperador das liberdades bem-te-vis
Agiu pelo coração e pela razão
Junto com o vaqueiro Raimundo e Manoel Balaio
Organizou a insurreição
Contra a insanidade
Contra a crueldade
A favor da liberdade
Bento das Chagas, saíste de Sobral
Para nossas terras, lutou até o fim
Três mil viviam sobre seu comando
Na guerra, na foice e no machado
E no tiro estupendo da espingarda velha
Camponeses, artesãos e escravos negros
Cheguem para o terreiro, o ganzá roncou
O atabaque gemeu, o berimbau bateu
Fumaça ao longe, trupelo de cavalos ferozes
Quem é? È o Lima de Alves e Silva?
Quem diria amigo soldado, matar quem não deve nada
E com isso receber títulos de nobreza
Até mais minha Caxias! Nós lhe tomamos por direito!
Acaso recebes ordens de vossa alteza, soldado?
Acaso recebe ordens do imperador menino, soldado?
Sabemos que realmente recebe sim as ordens da regência
Nessa triste hora da raça branca...
Então caro amigo, você matou nossos irmãos
Torturou nossos pais, filhos e filhas
Aqueles que sonhavam em ser livres de tudo e de todos
Aqueles e aquelas que viera D`África
Da Mãe Negra, do Pai João... do Pai José...
Agora amigos Balaios... vamos até o fim
- Vamos companheiros, deixem esses legalistas pra lá...
São homens do imperador menino, tal qual o pai...
Agucemos nossas foices para mais uma batalha na Miritiba
Chamem os guerreiros da Catingueira, do vale do Itapecurú e de Brejo
E também todos aqueles e aquelas que pretendem ir conosco
Raimundo está num extremo... Francisco noutro... e eu fico aqui
Queremos ler e escrever para conhecer nossas leis
E assim não sermos mais escravos de ninguém
Queimem as senzalas e libertem meus irmãos
Quebrem as correntes anunciando a abolição... que vem mais tarde...
Senhores... vocês me chamam de bandido, arruaceiro e feiticeiro
Hipócritas... nem respeitam minha raça... minha cultura de sangue
Minhas lutas e minhas glórias... minha história
Vocês vos sabem que desde 1830 que fui alforriado... e tive a plena consciência
De lutar pelos meus irmãos sofridos...
Tanto sangue, desgraça e dor...
Bacalhau, pelourinho... julguem-me por tudo isso
Escravos negros até nas igrejas...
Fomos nós meu Senhor quem construiu o Brasil
Arrancamos o ouro de Minas para a Metrópole pagar sua dívida com a Inglaterra
Fomos para os canaviais, praças e pecuárias
Construímos praças, sobrados, templos e pescamos para Vossas Senhorias
Fomos mortos n`alma e tratados como bichos
Sem valor... somente com a dor
Agora amigos da onça... queremos mais espaços
Por isso estamos aqui na Balaiada do Maranhão
Estou à frente de inúmeros negros... a cada dia chega mais gente, mais guerreiros
A cada momento estamos mais otimistas
Mas sei que vou ser assassinado da maneira mais hedionda e vergonhosa
Também sei que vos não escreverão minha história como ela é
Vão tentar dizer às futuras gerações de que eu fui um bandido subversivo
Vão dizer que não lutei... e sim que matei, o branco não fez nada... é santo
Vocês querem minha cabeça e meu fim
Para assim finalizar esses anseios em busca da liberdade dos povos
Em busca da república, em busca da democracia e dos direitos humanos
Sabemos meus amigos que existe um feito notável
De que somente os mais abastados usufruem do direito de ler e escrever
Por isso vamos lá... vamos conhecer para se libertar!
Já estou sabendo que Raimundo e Francisco foram pegos
Mas nós NEGROS... somos os últimos a cair...
Não vamos nos entregar....
Tragam minha roupa! Já são 15 de Janeiro de 1841... três anos de lutas incansáveis
Avante... meus irmãos! Lutemos contra a escravidão e contra todo sistema...
A insurreição ainda não terminou... O Raimundo se rendeu e
Nós sabemos que os brancos quilombolas querem a anistia
Mas o movimento vai continuar forte e intacto
Palavras para os legalistas... vocês não lembram?
Ou simplesmente fingem que não lembra que foram mais de 18 milhões
De africanos arrancados das terras de meus pais e avós
Para a diáspora no mundo
Ouçam minha voz... e libertem suas rebeldias
A escravidão é invenção de branco
É algo antigo... desde os tempos da Bíblia
Pois o poeta branco há de anunciar de que
“Hagar nem o leite do pranto tem que dá à Ismael”
Zumbi foi assassinado e Toussaint L ` Ouverture libertou o Haiti
Com idéias iluministas da Europa... dos sabidos brancos
Olhe companheiros... foram tantas lutas e batalhas
Perdas e vitórias...
As leis: Eusébio de Queirós, Ventre Livre... com certeza haverão de vir outras
Ontem a noite sonhei com a do “Saxagenário e uma certa Áurea de 1888”
Mas isso é pro futuro... se todos nós não desistir
Arrumem o berimbau, a cabaça e o atabaque
Coices e rasteiras nos brancos...
Nós não vamos morrer de açoites no pelourinho
Nós vamos caçar a noite pela mata fechada
E pela aurora acordar com a liberdade
Tambores do Congo, cabaças de angola
Melaço do engenho e grito de dor
Senzalas desgraçadas... queimem guerreiros
Vamos... vamos... porque o tempo está muito curto
Pois as tropas legalistas querem me capturar
Para assim dar fim de uma vez a insurreição dos Balaios
Só resta eu... e mais ninguém
Já é Janeiro de 1841 – a coisa está ficando feia
O cerco está se fechando... quem vem ali?
Correm negro por aqui... se esconde... atirem companheiros!
A luta é nossa... a vitória é nossa...
Lutem... fujam companheiros! Porque fui pego... agora vou ser julgado
E com toda certeza condenado...
Levem-me para a cadeia... e não contem minha história
Deixem para Mundinha Araújo do Centro de Cultura Negra do Maranhão contar
Pois ela haverá de pesquisar minha história depois de muito tempo
Estão me levando arrastado como bicho para a cadeia
Cheguei... tudo escuro... algo em comum... já estive aqui alguns anos atrás
Choro agora não só por mim
Mas pelos meus irmãos que foram executados... lutando por liberdade
A Balaiada acabou... como está o meu “Lagoa Amarela”
Março, Abril, Maio, Junho, Julho, Agosto... Setembro... de 1842...
Chegou a minha hora... estão me levando para a Vila de Itapecurú Mirim
Estou aqui... estou ouvindo alguém ler minha condenação em frente a esta cadeia Pública por ter liderado no Maranhão uma das maiores insurreições do Brasil contra As dores, desmandos e humilhações causadas às populações negras e camponesas...
Estão colocando a forca em meu pescoço
Taparam os meus olhos... mas quero dizer somente mais uma frase que é esta:
LIBERDADE... LIBERDADE... LIBERDADE!

Assina: Cosme Bento das Chagas (heterônimo)
Vila de Itapecurú Mirim, 20 de Setembro de 1842
Autor: José Antonio Basto
Urbano Santos-MA, 20 de Setembro de 2012

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